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19 de Abril de 2024
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    Por que restringir os Direitos Humanos das vítimas?

    Publicado por Justificando
    há 9 anos

    Como já tivemos oportunidade de comentar em outros textos aqui no Justificando, é frequente as pessoas que trabalham na área de Direitos Humanos serem interpeladas pela acusação de jamais se preocuparem com os direitos humanos das vítimas de crimes.

    A afirmação é inverídica e cheia de falácias que pretendem induzir aqueles menos familiarizados com os debates a respeito do tema à conclusão falsa de que a defesa dos Direitos Humanos corresponderia a uma leniência com a prática de crimes, em detrimento de uma preocupação de solidariedade que, segundo tal suposição, não existiria em relação às vítimas de crimes, mostrando uma verdadeira confusão entre os conceitos de Direitos humanos e caridade (como debatido nesta coluna aqui no Justificando).

    Justamente por isso é curioso notar que está em trâmite no Congresso Nacional o Projeto de Lei 5.069/2013, que propõe alterar a legislação para restringir direitos humanos das vítimas - e, frise-se, falamos aqui de direitos no sentido estrito da palavra, pois os direitos reprodutivos são amplamente reconhecidos pela ONU e outras organizações internacionais de Direitos Humanos como uma dimensão do direito à liberdade e aspecto indissociável da dignidade humana.

    A proposta, de autoria do Deputado Eduardo Cunha, conta com relatoria do Deputado Evandro Grussi, ambos membros da bancada Evangélica na Câmara, e pretende alterar a Lei 12.845 de 2013 que dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual, criando, para tanto, dois novos tipos penais para criminalizar mulheres.

    Para melhor compreender a situação, vale colocar aqui, resumidamente, o atual panorama jurídico em relação à interrupção voluntária da gravidez no Brasil.

    O abortamento é definido juridicamente como a conduta de interromper a gravidez, causando a morte do feto, e é criminalizado perante a legislação brasileira, a não ser em dois casos: existência de risco de morte da gestante e da ocorrência de gravidez decorrente de estupro (artigo 128, incisos I e II do Código Penal). Há, ainda, a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 54 julgando não haver crime de aborto se o feto for inviável em razão de anencefalia.

    A permissão para interrupção de gravidez decorrente de estupro está prevista no inciso II do artigo 128, CP. Deve ser realizado por médico e sempre depende da autorização da mulher (ou de seu representante legal, se for incapaz), pois se trata de exercício regular de direito - o que significa que as mulheres que ficarem grávidas por causa de um estupro e optarem por ter a criança terão total liberdade e autonomia para exercer este outro direito.

    Todavia, o Código Penal não fornece as diretrizes para o exercício do direito ao aborto legal, relegando a regulamentação da matéria à normativa administrativa, o que por muito tempo constituiu obstáculo para o pleno exercício deste direito pelas vítimas de violência sexual, por vezes exigindo-se delas providências que a própria legislação penal não prevê, como, por exemplo, a lavratura de boletim de ocorrência, sob o argumento de que o registro policial comprovaria a veracidade do depoimento da vítima.

    Para regulamentar a situação, em 2005 foi editada pelo Ministério da Saúde a Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento, que tornou expressamente inexigível a apresentação de Boletim de Ocorrência pela vítima para que esta tenha direito ao serviço de abortamento legal. O link para a norma completa está aqui. De qualquer forma, transcrevemos o tópico que nos interessa:

    3. NORMA TÉCNICA PREVENÇÃO E TRATAMENTO DOS AGRAVOS RESULTANTES DA VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA MULHERES E ADOLESCENTES
    O Ministério da Saúde normatizou os procedimentos para o atendimento ao abortamento em gravidez por violência sexual, conforme Norma Técnica Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes de Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes, que contempla a organização da atenção e um guia geral para este atendimento. O Código Penal não exige qualquer documento para a prática do abortamento nesses casos e a mulher violentada sexualmente não tem o dever legal de noticiar o fato à polícia. Deve-se orientá-la a tomar as providências policiais e judiciais cabíveis, mas, caso ela não o faça, não lhe pode ser negado o abortamento. O (a) médico (a) e demais profissionais de saúde não devem temer possíveis consequências jurídicas, caso revele-se posteriormente que a gravidez não foi resultado de violência sexual, pois “é isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima” (Código Penal, art. 20, § 1o).

    Em 2013, a Lei 12.845 foi sancionada para regulamentar esta norma técnica, definindo alguns termos que estavam em aberto. A lei define que violência sexual é toda forma de atividade sexual não consentida, determinando que o atendimento médico da vítima deve ser imediato e direto na rede de hospitais do SUS. Esta lei se dispõe a listar os serviços públicos obrigatórios que devem ser ofertados à mulher, vítima de um ato violento. Dentre eles, encontramos a profilaxia da gravidez (conhecida como pílula do dia seguinte) e de doenças sexualmente transmissíveis, além do fornecimento de informações sobre os direitos legais e demais serviços sanitários disponíveis e ofertados pelo Estado para situações como estas.

    Em outras palavras, o que a Norma Técnica do Ministério da Saúde determina é o seguinte: a mulher que engravida em decorrência de um estupro tem o direito de se dirigir a qualquer estabelecimento de saúde que realize o serviço de abortamento legal, relatar o ocorrido e terá direito ao procedimento para interrupção da gravidez, sem necessidade de apresentar B.O.

    Isto ocorre porque o processo criminal referente a um crime de estupro somente poderá ser instaurado se a vítima autorizar o Ministério Público para tanto (o que tecnicamente se chama Ação Penal Pública condicionada à representação da vítima). A lei penal foi feita desta forma justamente por se tratar de um crime que invade a esfera de privacidade e intimidade da vítima de maneira extremamente violenta, e o Estado considerou que obrigá-la a novamente se expor poderia causar mais danos à sua saúde mental e emocional do que deixar de processar o autor do crime – e é claro que esta determinação legal deve (ao menos idealmente) ser combinada com campanhas para que vítimas denunciem as violências sofridas, e com constantes treinamentos das equipes de atendimento com vistas a erradicar a violência institucional que pode ocorrer nesses casos.

    Assim, se nem mesmo o Código Penal exige que a vítima autorize o processo do agressor, não há sentido em exigir dela um boletim de ocorrência para que exerça o direito de interromper uma gravidez decorrente de estupro.

    Sob o pretexto de identificar criminalmente os agressores, o projeto pretende obstaculizar o acesso de mulheres, vítimas de violência sexual, ao atendimento médico especializado. Sucede, porém, que este direito não pode ser negociado, vez que o artigo da Constituição Federal define que o acesso à saúde é livre, sendo um direito social de todos e todas. O projeto também viola outros princípios constitucionais como o livre acesso à informação e a privacidade da mulher. Concluimos, portanto, que o projeto, além de retrógrado, é inconstitucional, podendo e devendo ser levado para apreciação do Supremo Tribunal Federal, caso aprovado no Congresso Nacional.

    E a esta altura do texto é possível que você, leitor, esteja questionando: “mas... e se a mulher mentir, dizendo que foi estuprada, só para conseguir fazer um aborto?” A resposta da lei é simples: se ela mentiu e, na verdade, não foi estuprada, praticou um aborto ilegal e está sujeita a um processo criminal pelo crime de aborto, com pena de prisão de 1 a 3 anos. O médico que tenha realizado o procedimento, por ter sido induzido em erro, não responde por crime algum.

    “Mas... e se ninguém descobrir que ela mentiu?” Nessa hipótese, nada acontece: ela processada nem punida, e o fato entrará para a cifra negra dos crimes que jamais chegam ao conhecimento das autoridades.

    Porém, como disse acima, essa é a resposta da letra fria da lei, e as respostas oferecidas pelo Direito Penal dificilmente vão além disso. Por isso gosto de outras formas de pensar a realidade, pois o Direito soluciona muito pouco os conflitos da vida (afinal, o Direito – especialmente o Penal – somente entra em campo quando o conflito já está mais do que instaurado).

    Há pesquisas de campo no sentido de demonstrar que a inexigibilidade do Boletim de Ocorrência não estimula a prática do abortamento de forma ilegal. Na verdade, todo o movimento é no sentido oposto (ou seja, de estimular as mulheres vítimas de violência sexual a procurarem os serviços de atendimento), pois em razão dos muitos preconceitos e estereótipos que cercam o delicado tema da violência sexual, não é raro ocorrer o que se denomina revitimização por meio da violência institucional: não obstante os progressos nessa área, ainda se encontram depoimentos de mulheres vítimas deste tipo de violência relatando terem sido mal atendidas nos serviços de saúde e na polícia. Aliás, omais frequente nestes locais de atendimento é que a vítima compareça já tendo feito o Boletim de Ocorrência, o que permite deduzir que as mulheres vítimas de violência sexual provavelmente somente tem conhecimento de seus direitos quanto ao atendimento ao se dirigirem à polícia.

    Assim, parece-nos bastante improvável que uma mulher que tenha engravidado sem querer procuraria um serviço de abortamento legal para mentir, dizendo ter sido estuprada, e submeter-se a situações possivelmente vexatórias (e até mesmo de violência psicológica), tudo para realizar um aborto gratuito, apenas por ser legalizado. As estatísticas e observações em campo mostram ser mais provável que ela procure a clínica clandestina (ou o farmacêutico, ou a vizinha, ou a parteira) mais próxima, e se sujeite a todos os outros riscos advindos da criminalização do aborto.

    Hipóteses como estas foram levantadas na audiência pública do último dia 1º de outubro, quando a Comissão de Constituição e Justiça abriu suas portas para que especialistas pudessem debater a matéria. Em uma platéia cheia de jovens fundamentalistas, os movimentos feministas estavam em franca minoria e esse mesmo cenário se refletia na fala dos parlamentares presentes. A divisão entre Deputados e Deputadas foi clara, tendo sido o projeto duramente criticado pelas Deputadas Cristiane Brasil, Erika Kokay e Maria do Rosário, mas, recebendo, por outro lado, apoio integral por parte dos representantes homens que acompanharam a discussão.

    Resta perguntar quais são os verdadeiros interesses que estão em jogo para separar quem, de fato, representa o eleitorado feminino dentro das casas legislativas. Precisamos estar atentas para perceber quem são os parlamentares que defendem nossos direitos, no intuito de que não haja retrocesso na conquistas das poucas garantias que acumulamos ao longo de décadas de uma luta travada em homenagem àquelas que morreram e não conseguiram chegar até aqui.

    #nenhumamulheramenos

    Maíra Zapater é graduada em Direito pela PUC-SP e Ciências Sociais pela FFLCH-USP. É especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo e doutoranda em Direitos Humanos pela FADUSP. Professora e pesquisadora, é autora do blog deunatv.

    Gabriela Cunha Ferraz é advogada, militante, mestra em Direitos Humanos pela Universidade de Estrasburgo e Coordenadora nacional do CLADEM/Brasil.

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    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/por-que-restringir-os-direitos-humanos-das-vitimas/238969941

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